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Caderno de confidências

Hoje me lembrei de uma pergunta muito específica que tinha naquele tal caderno de confidências. Quem viveu a infância/adolescência nos anos 90 sabe...

Para você, qual o pior sentimento do mundo? 

Na época, a resposta mais batida era Saudade. 
Quase toda menina apaixonada respondia isso. E quase toda menina sempre tava apaixonada por alguém. Quer fosse uma paixãozinha platônica, por algum cantorzinho da vez, quer fosse um coleguinha da sala que nem tchum, ou um namoradinho da vizinhança, um primo,... sempre tinha alguém. E, vamo combinar, saudade, em qualquer idade, dói mesmo, né?

Hoje, com aquela sensação de ter trazido um caderno desses pra casa (porque a gente trazia pra casa pra responder e devolver no dia seguinte), eu responderia: decepção.

Decepção. 8 letras, e uma desgraça imensa na vida da pessoa. Decepção é um sentimento que rasga a gente, de dentro pra fora, e faz um estrago gigantesco, diretamente proporcional ao quanto você achava que conhecia, ao quanto você achava que podia confiar na pessoa.
Decepção. Quando alguém que você pensa que jamais te faria qualquer mal, faz, conscientemente, e sem qualquer remorso, e de forma cruel. O chão se abre, e a queda parece nunca ter fim. E a impressão de que a pessoa passa pelo buraco, dá uma olhadela qualquer, e continua andando, quase como se tivesse visto um carro passar, é como se, durante a queda, você fosse se debatendo pelas paredes repetidas vezes, até, finalmente, cair no chão, totalmente despedaçada.
Decepção, depois de anos de história, de convivência, de algo que você pensou ter construído com solidez. De amizade. De castelos de areia. Decepção. Quando você pensa que vai sempre poder olhar pra trás com respeito, carinho, porque tem a segurança de, no presente, existir algo que foi construído ao longo de vários anos com bases de muito esmero, e é sólido, verdadeiro, recíproco,... tijolos de amizade, cumplicidade, de histórias, momentos importantes e marcantes, e um cimento que chuva nenhuma jamais poderia destruir, feito de laços verdadeiros e puros. E, em questão de meses, depois de anos, ver tudo isso simplesmente ruir. Assim, sem mais nem menos. Não resta amizade, respeito. Não resta consideração. E você olhar pra pessoa, e não saber quem é. Não ter a menor idéia de quem é aquela pessoa. Você ouvir coisas que você jamais imaginou. Ou você simplesmente não ouvir. Fica um vazio. É como se tivessem lhe roubado anos da sua vida e sumido com eles, e você não tem idéia de onde eles foram parar.
Decepção. Depois de dias seguidos, semanas, meses, anos, convivência frequente, certeza de uma amizade daquelas de "abrir a porta da geladeira" um da casa do outro, confidências, fins de semana no sofá sem qualquer programação, só a companhia.... e, de repente, você mal se reconhecer no olhar do outro. Você não reconhecer o tom de voz, ou não reconhecer o calor do toque, do abraço. O desvio do olhar. A sensação de ser um fantasma, ou de nunca ter existo pra alguém. É a certeza de que, praquela pessoa, você morreu.
Decepção. Quando você espera que te queiram bem, e confiem em você e nas suas próprias decisões pela sua vida e felicidade, mas, na verdade, não... você tem um modelo a seguir, e, aquele modelo, pro seu espanto, é o que chamam de "felicidade", e não necessariamente tem que coincidir com a realidade, com o fato em si. E você que lide que com isso como puder, porque é assim que as coisas são, e, caso você se recuse, bom... aí você vai ter de lidar com todas essas pessoas virando as costas pra você também, te apontando o dedo, e o que mais vier por aí.
Decepção. Quando você busca ajuda de alguém que é um porto seguro no seu coração, e descobre que esse porto seguro não existe mais. Que você não tem mais lugar lá, e você fica à deriva, procurando, procurando... é como tentar alcançar a borda de uma piscina, mas ela não tá lá. É você sair correndo em direção a um velho conhecido que passou, e, quando você o vira, na verdade só parecia ser ele, não é. É a pessoa literalmente virar as coisas pra você. É você estar no fundo do poço e ouvir que não, que aquilo ali é só um buraquinho raso, e que a pessoa não tem tempo pra frescura. É você gritar, implorar por socorro, e se deparar com um olhar vazio, inexpressivo. Se derramar em amor, e receber desprezo, sequer ser ouvida. É descobrir ter guardado uma jóia num banco que já foi demolido e transformado em outro tipo de estabelecimento há anos... e não te resta mais nada lá.
Decepção. Quando você quer alguém muito bem, e se esforça o máximo que pode pra fazer o bem e cuidar daquela pessoa, simplesmente por gostar dela. É capaz de tomar doses homeopáticas de espinhos que entram pelo ouvido e vão direto pro coração, só pra que aquela pessoa esvazie a sua dor e você possa ajudá-la, diariamente. É quando você carrega o mundo daquela pessoa nas suas costas, por mais que o seu próprio esteja desabando, só pra que aquela pessoa seja capaz de continuar... E, de repente, pelo menor mal entendido, vem uma tempestade que você jamais previra, te pegando, obviamente, totalmente desprevenida e indefesa. Completamente chocante e doloroso. E aquela pessoa se transforma, ou simplesmente se revela, e o que você vê é assustador, decepcionante. Mas nada se perde. Por pior que seja a humilhação, fica o aprendizado. E, por agora, o que eu posso dizer é: a pior dor é essa, decepção.



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