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Sobre o dia da mulher

Quanto eu tinha 15 anos tive meu primeiro namorado. Pra mim, era quase um sonho, porque, até então, todas as minhas amigas tinham tido um namorado, menos eu. Ele era um amigo da minha sala e da internet, e eu meio que me apaixonei pelas conversinhas de internet. Nelas, ele era um amor.
Ficamos e logo começamos a namorar. Eu era muito apaixonada, e me joguei de cabeça. Nem preciso dizer que perdi minha virgindade com ele. Ele nunca acreditou, porque eu não tive uma hemorragia, como ele esperava. Passei um ano e meio com ele, e durante um ano e meio, ele me jogou isso na cara.
Naquela época, 15 anos atrás, ainda não se falava de violência psicológica - mas era exatamente o que rolava comigo. Ele brigava diariamente comigo, e me xingava MUITO. Me proibiu de falar com todos os meus amigos, exceto uma única amiga, que ele "considerava confiável". Até com o namorado dela ele me proibiu de falar. Ele brigava comigo, desligava o telefone na minha cara, e avisava a todos da casa dele que não queria falar comigo naquele dia. A mãe dele, por algum motivo, apoiava isso, porque se eu ligasse, ela parecia ter algum prazer em falar pra uma menina de 15 anos que ele não queria me atender. Vai entender.
Meio ano depois que começamos a namorar, ele passou no vestibular e saiu da escola, porém, de alguma forma, continuava me vigiando. Eu não podia sequer emprestar uma borracha ou olhar pro lado, porque ele ficava sabendo. Se eu o fizesse, ele passava o resto do dia sem me atender. E eu sofria muito. Jamais saberia dizer quantas vezes chorei naquele um ano e meio.
Bom, a minha sorte é que eu sempre fui muito orgulhosa, e ainda me restava alguma coisa disso. Então, eu comecei a perceber que tava indo mesmo pro fundo do poço num dia que ele chegou muito perto de me bater na minha casa. Ele apertou meu braço e me empurrou na cama. Depois, saiu andando, e foi embora. O problema é que quando a gente vive esse tipo de relação, normalmente a gente tem uma certa dependência. Logo, eu fui atrás. Sempre morei em apartamento. Esperando o elevador, ele ainda me empurrou outras vezes.
Lá embaixo, ele me empurrou, eu caí, não lembro como, e ele foi embora.
Foi nessa hora que o vigia do meu prédio veio conversar comigo. Ele me conhecia desde os meus 9, 10 anos, e eu me lembro até hoje de ele me dizendo que eu não merecia aquilo. Que eu terminasse com ele, que eu era muito jovem, e teria outros namorados que me tratariam melhor. Foi a primeira vez que realmente me dei conta do quão humilhante era a minha situação...
Ainda passaram alguns meses até que eu realmente me cansasse e terminasse com ele.

...


Até poucos meses atrás a idéia do feminismo era algo inconcebível pra mim. Venho de uma família razoavelmente conservadora, e isso nunca me foi problema. Gostava das coisas do jeito que eram, e, apesar de sempre ter tido uma mente aberta pra muitas coisas, nunca tinha parado pra pensar realmente no que era ser o o ser oprimido. Até que.
A gente tende a ver o sofrimento das pessoas como exagero, quando sofremos de falta de sensibilidade. A real é que a sociedade é, de fato, machista, conservadora, e tá pouco se fodendo pra você, principalmente se ela vê as coisas do jeito que eu tava acostumada a ver. Não, eu nunca fui insensível, e nem sofri de falta de empatia, grazadeus. Pelo contrário - sempre fui muito sensível ao sofrimento alheio.
Tive que chegar ao fundo do poço pra ver o que é ser oprimida (e acredito realmente que não sofri nem uma parcela dessa opressão horrorosa que o machismo pode oferecer) por esse machismo cruel e tão enraizado na nossa sociedade pra entender porque a marcha das vadias não é simplesmente "um monte de mulher querendo chamar a atenção com os peitos de fora". Sim, porque não é fácil ouvir de pessoas que você jamais esperou darem as costas pra você que, você fazer uma escolha pela sua felicidade implicaria estragar a vida daqueles que você mais ama: seus filhos. E não, não foi de uma ou duas pessoas que eu ouvi isso. Tenho certeza que se a escolha tivesse sido do meu ex marido, ele não teria ouvido isso nem de uma pessoa sequer.
Devo dizer que, por semanas, a sensação era de literalmente rastejar, depois de ter ido à um almoço pra ser escrachada por mulheres que eu julgava serem minhas amigas, independente do que me ligava à elas. Porque ouvir que você literalmente abandonou seus filhos porque escolheu se separar, e, no final do almoço, dar tchau pro teto, ou pro chão, ou pro que quer que fosse, já que de quatro pessoas, uma única olhou pra sua cara de volta, dói, e muito. Isso, dentre várias outras coisas, que, por semanas, eu sequer conseguia pensar sobre, por medo do que eu poderia sentir.
Se eu disser que ouvir, por um mês, que você não presta por ter feito essa escolha, vai soar quase que de boa. Mas um mês são 30 dias. E 30 dias, enquanto você cuida dos seus filhos, tentando se convencer de que você fez uma escolha por si e vai ficar tudo bem, porém, em paralelo a isso, você ter de ouvir de pessoas que realmente importam, que você está sozinha, e te julgarem diariamente, das piores formas possíveis. Bom, não, não é fácil. Nem um pouco. Dormir é impossível. Comer, então, nem pensar.
E aí que você passou 3 anos do seu casamento dentro de uma igreja. E pensa que fez uma grande amizade com o pastor da sua congregação. Você resolveu sair da igreja também. Ele te chama pra conversar. Você explica sua separação e sua saída da igreja, e ele te explica que, dali em diante, aquelas pessoas com quem você conviveu quase que diariamente naqueles anos não vão mais te tratar como irmãos, mas como conhecidos. E aquilo, sim, parece uma facada nas costas. Se antes doía, agora fica insuportável, e o seu corpo inteiro passa a doer. E isso era só o que precisava pra você entrar em uma crise horrorosa de depressão (sim, porque você já convivia com a bo-ni-ta há 4 anos), e não pensar em outra coisa na vida que não fosse deixar de existir.
Daí em diante, seus filhos vão morar com o pai, porque sua indicação seria de internação, mas na sua cidade não tem um hospital psiquiátrico adequado, segundo o seu psiquiatra, e você começa a ter sempre alguém te acompanhando dentro de casa, 24hs.
Óbvio que você não vai gritar isso aos quatro cantos. Porém, é o suficiente pra deus.e.o.raimundo te julgarem pelo fato de os seus filhos não estarem morando com você, sem nem saberem o motivo - e nisso inclua-se quem se sentir à vontade, desde conhecidos a parentes que queiram fazer telefone sem fio ou com fio pra dizer que você "não está cuidando dos seus filhos". Foda-se se você cuidou deles até então, e se foi bem ou mal. O que importa é que, naquele exato momento, eles não estão morando com você, e você se tornou a pior mãe do mundo por isso. Exato. As pessoas são cruéis assim. As mulheres são cruéis assim. Porque, nesse mundo, filhos, pra alguns, parece que só tem mãe, não tem pai. Os meus, graças a Deus, sempre tiveram mãe e pai, e isso inclui os avós e tios paternos.

...

Claro, depois disso, no meio disso, enfim. Várias escolhas continuam e continuaram sendo julgadas. E, sim, hoje eu tenho consciência de que grande parte do que eu sofri e vivi nesse período veio de toda uma estrutura social baseada nesse machismo. Nesse caminho, houveram perdas, decepções, e muitas, muitas dores. Porém, mais do que isso, aprendizado, que sempre vale mais do que essas dores, e eu costumo focar nisso.
Hoje eu sei que o que eu quero é poder fazer algo relevante, e poder conscientizar, pelo menos, os meus filhos, que são parte da próxima geração, da igualdade de gênero. Quero que eles saibam tratar uma mulher com o respeito que ela merece, de igual pra igual. Quero que eles saibam que não existe essa história de "lugar de mulher é". E isso inclui dizer o seguinte: Meus amores, houve um período que a mamãe não tava bem, por isso vocês moraram com o papai, que também ama vocês." Sei que eles tem um bom exemplo de pai, e eu não vou precisar dizer pra eles que, se eles escolherem serem pais junto com uma mãe, o papel deles não é ajudar, mas ser pai. E isso diz muita coisa.
Espero, de alguma forma, poder ajudar algumas mulheres que sejam vítimas disso tudo. Não sei como. Só espero poder fazer alguma coisa, porque existe essa urgência dentro de mim.

...


Infelizmente, por mais que tenha acontecido comigo, óbvio, eu sei, acontece muito pior com milhares de outras mulheres, a gente nunca imagina que a violência doméstica, seja de que forma for, esteja tão próxima da gente. Mas ela existe, é real, e, sim, tá mais próxima do que a gente imagina.
Levei esse trauma por muitos anos. Passaram mais de 10 anos pra que eu conseguisse ME perdoar por ter me deixado passar por isso. Eu casei, tive meus filhos, e não conseguia sequer pensar no meu primeiro namorado sem sentir ódio, nojo. Não conseguia pensar naquela história sem ter raiva de mim. É dificil.
Claro, isso sempre vai fazer parte de mim, da minha história, de quem eu sou.
Não consigo estar perto de qualquer situação dessas que me descontrolo. Pra mim, é inconcebível ver um homem gritando ou fazendo qualquer coisa parecida com uma mulher. Me tira realmente o equilíbrio, o chão. Talvez por isso essa urgência. É não querer permitir que ninguém mais perto de mim viva aquilo.
Nenhuma mulher merece ser tratada desse jeito.

...


Então, amanhã hoje é o dia da mulher. Há quem diga que não há motivo pra comemorar, e há quem parabenize as mulheres.
Eu concordo que ainda não temos o que comemorar. Ainda temos muito pelo que lutar. MUITO. Porém, sim, temos muito pelo que nos parabenizar, também, porque, apesar de tudo que temos passado, continuamos levantando, e ainda lutamos. Mas, verdade seja dita, precisamos, sim, nos empoderar, uma a uma, e cada vez mais.
Lamento, profundamente, pelas mulheres que, ao invés de se darem as mãos, ao invés de se serem solidárias, apontam o dedo, julgam. Lamento porque, muitas vezes, o machismo vem de outras mulheres. Lamento porque ainda existem mulheres que pensam que precisam de um homem pra serem felizes, ou pra sustentá-las. Lamento porque ainda existem mulheres que vivem em situações de violência doméstica com a anuência da própria família, porque a família, por algum motivo, pensa que o certo é ter a família no modelo tradicional. Lamento porque precisamos ter medo em situações corriqueiras, simplesmente por sermos mulheres. Lamento, porque, infelizmente, muitas vezes não tenho amor no meu coração o suficiente pra somente lamentar. Muitas vezes, minha reação é de ódio, ou de desprezo. E sei que tenho que trabalhar muito isso em mim.
Enfim. Lamento, porque ainda existem tantos motivos pra lamentar no dia da mulher.





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